segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Quarta Capa - Ossos de Princesas - Evandro Affonso Ferreira


Beatriz Grimaldi sabe que caminhamos tempo todo sobre essa linha divisória entre Fausto e Mefistófeles; que somos anjos desabençoados; que a felicidade é muitas vezes tão inacessível quanto o folclore druídico; que a vida quase sempre se torna uma encruzilhada – lugar onde se cruzam desespero e medo e impotência. Beatriz é escritora que sabe que na vida entre nós, desvalidos, não há espaço para a ataraxia epicurista: a paz de espírito é infactível, está fora dos limites da possibilidade; que na maioria das vezes não é possível jogar a carga ao mar para não se afogar. Estamos diante de uma autora substanciosa. Nesses Ossos de Princesas não há espaço para tagarelice cheia de ventos. Beatriz Grimaldi é daquele tipo de autor que podemos chamar de niilista honorável: sabe – à semelhança de Cioran – que a vida se cria no delírio e se desfaz no tédio. Sabe que deus – existindo ou não – está afastado dos homens. Modo geral, seus personagens não carregam nenhuma amargura vingativa – mas há dentro das mãos uma delicadeza indigesta. Finalmente, sabe que nem todos os nossos esforços são infrutíferos: escrever um bom livro, por exemplo, vale a pena.

Evandro Affonso Ferreira

Orelha - Ossos de Princesas - Marcia Tiburi


Ossos de Princesas, livro de estreia em que Beatriz Grimaldi se mostra uma afinada contista, é obra cujas características apaixonarão seus leitores. Digo que se trata de paixão no que se dará a ler, porque as histórias nada mornas aqui narradas, mas sanguíneas e incandescentes, provocarão amor e ódio aos personagens e seus atos. Ou raiva e compaixão aos fatos e ao destino, mas nunca aqueles afetos suaves que, entre inconsistência e indiferença, são típicos dos livros rasos protegidos das veredas reais da literatura. Um livro como este é de pegar e não largar, porque a cada um é interdito abandonar o sangue que lhe inunda as veias.
É deste sangue que é feita a literatura. Assim com estes 19 contos marcados por duas habilidades narrativas: em primeiro lugar, a ação racional e direta que torna o texto agradável à leitura define o alto grau de objetividade desta narrativa. Em segundo lugar, no clima ardente do livro, sobressai a característica básica das personagens: são mulheres comuns, as mais ordinárias, as mais banais e cotidianas das criaturas cuja subjetividade trágica é magistralmente desnudada. Não é de espantar que um dia este livro se torne peça de teatro e filme, devido ao arranjo encorpado entre o fato e seu ator, costurado com a estranheza inquietante das personagens que se mostram a nós tantas vezes como em virtude de espelho.
Todas as histórias deste livro são de um modo ou de outro surpreendentes tanto no que concerne ao conteúdo, quanto no que diz respeito ao desfecho. Não precisariam sê-lo porque lhes bastaria a beleza da reflexão, a construção dos cenários e das personagens. Bastaria tantas vezes a brutalidade do fato, mais do que a desenvoltura do ato. É inequívoca, no entanto, a força da narrativa no que ela vem revelar, como se tanto os veludos pesados do real quanto seus voais mais finos tivessem sido escrupulosamente retirados. Loucas e solitárias suicidas, estupradas e assassinas trafegam como fantoches de projetos de vida inexistentes. Desde a perversa que mata a mãe até a psiquiatra que se apaixona por sua paciente louca, da menina abusada sexualmente à idosa que busca um registro geral de identidade, vemos o desfile de vidas expostas na fratura que delimita o sentido do qual, de um modo ou de outro, todos fazemos parte como presenças ou ausências ambulantes. Muitas vezes ao mesmo tempo.
Ossos de Princesas é a quintessência de alguma coisa real que não queremos ver. Certa face de Medusa para a qual a literatura é sempre escudo enquanto é, ao mesmo tempo, espelho. Como diante de uma fotografia que revela o abscôndito, convido os corajosos ao ato sempre metamórfico da leitura que deverá elevar-se aqui à sua potência radical.

Marcia Tiburi