sábado, 3 de agosto de 2013

DRAMA DE PALCO - Revista Antro Positivo

Uma sala bem pequena. Uma sala para dois corpos sem recheio. Esvaziados como bexigas que perderam o ar. Chiando e se debatendo. Apartamento. Chiando e se debatendo. As paredes são desbotadas, amarelo-pálido, cheias  de bolhas, Mirna e Ele, do lado de dentro do apartamento. As paredes e o desejo de seus donos são flácidos. Se estreitam cheios de trincas até alcançarem a porta.
Mirna e Ele, tem os cabelos cor de palha. São altos e magros. Longílineos. Eles, as roupas, os móveis, quase sem cor. Apenas a boca de Mirna é pintada de vermelho. A boca de Mirna que não para. A incansável boca de Mirna. O vermelho e o som de cidade: acelerar de carros, betoneira, serra elétrica, buzinas, miados, helicóptero.Tudo muito distante e baixo. Na rua e na casa freadas bruscas. Pneus e falas: “ Acabou, Mirna”,  foi isso que você disse. Eu quase me lembro e no mesmo instante esqueço. Esquecer é um esforço. A sala era de paredes claras desbotadas e sua voz corria em círculos. Sua voz girando atrás do rabo, repetidas vezes. Você, rei de uma única fala: “Acabou, Mirna, eu não te quero mais”. Sua fala trançada em minhas artérias, sugando meu oxigênio. Eu, cinquenta por cento de ar. Um quilo e meio de cérebro guardados em uma caixa de ossos, com um único pensamento: “Acabou Mirna”. A massa se encolhe, mas não se desentrega. Repetindo mil vezes, mil e uma vezes e duas e três e falta o ar, o choro não escorre, e cinco, e as pernas tremem, mil e seis vezes. Vertigens. ”Acabou, Mirna.”
As vezes penso que  foi o medo. O medo me fez crer que ouvi você falar. Sinto meu coração acelerado, as mãos tremerem, meu corpo todo. A boca seca. “Mirna, acabou. Eu não te quero mais”.  Um quilo e meio de cérebro não pesaria muito se não me prendesse ao chão. Mirna está sentada em uma cadeira pequena e baixa na sala de jantar. A mesa tem só dois lugares. Nos pratos, macarrão e ovos mexidos esfriam enquanto ela fala. Seus olhos pouco piscam.
O que foi que você disse? O que foi que você disse? O que foi que você disse? Tento me lembrar. Tento esquecer. Sua fala enroscada nos meus cílíos, na coxa esquerda, na porta. Por todos os cantos. No ar que passa pelos meus dentes: “Dessa vez estou indo embora Mirna. Essa é a última vez, entendeu? Entendeu Mirna? Acabou.”  Sua fala esfarrapada subindo como parasita pelas paredes, atravessando portas e frestas, descendo pelas minhas pernas, invadindo meu sexo, se enraizando no úmido. Nessas infiltrações. Em todas as paredes.
Mirna, sibila um longo psiu. Não é a primeira vez. Faça silêncio. É disso que eu preciso, do seu silêncio. Assim. Esse som que não tem sua palavra é tão melhor. Essa ausência. Levanta-se e caminha até a fotografia dele, um poster de tamanho natural de 1.80 m, pregado na parede esquerda. Ela arrasta uma cadeira com a mão direita. Uma ação lenta. Os pés pouco saem do chão, não fazem barulho. O rosto de Mirna, não tem expressão. Coloca a cadeira em frente ao poster. Para atrás da cadeira, os braços ao longo do corpo. Fala olhando para a fotografia: Cale-se um pouco e sente-se. As palavras precisam de silêncio. Elas não podem ocupar todo espaço. As suas, eu me lembro bem, invadem os poros do mundo. As letras se juntam num pelotão a me espremer. Inúmeras vezes expelidas em minha direção. Eu tento dizer: Parem! Mirna despenca lentamente. Levanta-se. Eu digo mais uma vez: Parem! Mirna despenca lentamente. Levanta-se. Parem! Mirna sobe em cima da cadeira, cola a boca na fotografia. Desabotoa o vestido, que deixa cair no chão.Tira os sapatos.
Eu disse a você que não era hora de sons. Eles nos atordoam, nos fazem oscilar, como pêndulos. Frente e trás. Frente e trás. Eles nos atordoam. Nunca sabemos se vamos cair. O ruído dos seus passos não sai da minha cabeça. Esse som das solas de borracha marcando o chão, freadas bruscas. Passos de número 42, querendo ir. Não deixe que eles saiam de perto de nós. Você já fez isso tantas vezes.
Mirna, nua, roça seu corpo na fotografia. Vamos fale. Isso foi agora, não foi?  “Acabou, Mirna! Eu não te quero mais.” Não Foi?  O quente do seu gozo escorria pelo meu rosto, você lembra? Os ossos pontiagudos do meu quadril se encaixavam nas suas costas. Você lembra? Meus dentes no seu pescoço.  Meus seios arrepiados nos seu cabelos, na sua boca. Você lembra? Você poderia ter dito tantas outras coisas.Tantas outras coisas. Mirna caminha  até a mesa. Deita o rosto sobre a comida. A boca vermelha e suja. O macarrão e os ovos mexidos espalhados por todo corpo. As mãos na boca e na comida. Acaricia seu corpo,toca sua pele. Passeia os dedos pelas trincas. Ouve-se um som de água, descendo pela tubulação, misturado aos seus gemidos. A água segue na direção mais profunda. A água retida é um armazenamento morto. Ela grita: Agora chega! Apaguem as luzes. As luzes do palco diminuem. Voltem para suas casas. Eu continuarei aqui. “Acabou, Mirna”! Fechem as cortinas. O barulho da água e a voz de Mirna. O palco escuro. Uma, duas, mil vezes. “Acabou, Mirna”. A infiltração é um processo lento. Muito lento. “Acabou, Mirna”. 
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Toda casa/cenário, protege os indivíduos de fenômenos naturais exteriores, mas não dos males da alma.




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